Caro pastor e mestre,
Embora passados 46 anos ainda lamentamos muito sua
partida tão precoce, vítima exatamente daquilo que se tornou uma das maiores
legendas de sua vida: a não-violência. E motivado por intolerância e ódio que
eram as antíteses justapostas de sua vida e missão.
Bem que você poderia estar aqui desfrutando de seus
85 anos de vida, caminhando conosco em muitos outros enfrentamentos pacíficos
por direitos sociais, culturais, difusos, enfim, por mais justiça para todos.
Aqueles que atentaram contra sua vida acharam que
lhe matando, aniquilariam as lutas por direitos civis, justiça e paz. Ledo
engano! Sua morte, que lamentamos sempre, levou a muitas conquistas e a outras
plausíveis bandeiras também. Ainda assim, é verdade que muita gente lhe prefere
a ativo em tantas militâncias por justiça, dignidade humana e pacifismo.
Seus sonhos por equidade, como ditos no grande
discurso do Memorial Lincoln na Marcha de Washington em 1963 despertou
consciências e levou a mobilizações por justiça em todo mundo, tanto de negros
quanto de brancos, inclusive no Brasil.
Passado mais de um século da abolição jurídica da
escravatura aqui no contexto brasileiro, existe ainda muita intolerância,
discriminação, preconceito e mesmo escravidão, tanto econômica, religiosa,
geográfica, educacional, profissional, salarial. E não só contra negros como
também contra índios, bolivianos e outros pobres latino-americanos, contra
chineses e outros asiáticos e também africanos. Sem falar na violência letal
que dizima preferencialmente negros no Brasil – cerca de 70% do total – como
apontaram, mais uma vez, dados recentemente divulgados. O que a polícia matou
aqui só em 2013 equivale à mesma quantidade de mortos praticados pela polícia
de seu país, só que num período de 30 anos. Um genocídio silencioso e
continuado. Planejado?
O sistema de cotas criado em seu país e que deu
certo foi muito tardiamente aplicado aqui, mas já mostra bons resultados,
embora haja muita oposição e crítica feroz, muitas delas com discursos sofistas
que dissimulam preconceito perverso. Certamente não é o melhor sistema, mas é o
que é possível, e tem produzido resultados no diapasão da justiça. Esta é uma
questão de direito, não de bondade, obviamente!
Permita-me alongar só um pouco mais esta missiva.
Passados anos e décadas destas lutas e discussões étnicas por justiça e
reconciliação existem ainda muitas denominações religiosas no Brasil, como
ilustram bem grupos batistas, que somente mantém parcerias e, por isso mesmo,
recebem aqui apenas pastores e missionários brancos, geralmente estadunidenses.
Como se não houvesse tantos evangélicos negros nos Estados Unidos!
Em seu país as coisas também não andam muito bem.
Seu sonho de que brancos e negros pudessem viver efetivamente juntos ocorreu em
grande parte, sobretudo por conta da legislação que acabou com a segregação em
escolas, bebedouros, banheiros, restaurantes etc. Porém, no ambiente particular
das igrejas, onde o Estado não pode legislar, a separação se manteve e
prevalece em grande parte. O que você disse há mais de 50 anos de que o dia e a
hora mais segregados dos Estados Unidos é o domingo às 9 horas da manhã, quando
as igrejas se reúnem para seus cultos, permanece – escandalosamente – até hoje.
E tem recrudescido muitos problemas de violência contra negros, sobretudo em
sua região, no Sul do país.~
Aqui entre nós há alguns movimentos de luta e
resistência, inclusive no contexto das igrejas, mas há ainda uma longa
caminhada a ser percorrida para efetivação da justiça. Não quero mesmo
incomodar seu sossego eterno, mas sabe que as cúpulas denominacionais aqui são
majoritariamente brancas? Atualmente os presidentes dos batistas, dos
metodistas, dos presbiterianos, dos congregacionais, dos luteranos, dos assembleianos,
enfim, são todos da mesma pigmentação da pele dos antigos senhores da
Casa-grande. E olha que temos uma igreja bastante negra e mestiça no Brasil. O
nosso pentecostalismo, sobretudo, é grandemente negro e pardo, como dizemos
aqui, mas nem entre estas cúpulas os negros têm muita chance. É verdade –
justiça seja feita – que tem muitos brancos de consciência e alma negras,
graças a Deus, que militam por justiça nestas questões. Como têm, também,
infelizmente, negros de consciência e alma brancos, reféns da mentalidade
colonial que assimilaram do senhorio desumanizador da escravidão. Estes últimos
não se dão conta de que o preconceito e discriminação que sofreram e sofrem
ainda eles reproduzem contra seus irmãos. São vítimas de um sistema iníquo que
deformou suas consciências contra eles próprios.
Faço aqui estes deslocamentos entre “dominado” e
“dominador” a partir destas questões de cor e consciência, numa perspectiva
metodológica visando a conversão de todos ao caminho da reconciliação pelo viés
da justiça e da paz, não para discriminar um grupo em detrimento de outro. Como
bem disse D. Hélder Câmara no texto daMissa dos Quilombos “não queremos que
escravos de hoje se tornem senhores de escravos amanhã”. Basta de divisão!
Caro Luther King, sua luta e de muitos de sua
geração continua hoje como batalha pacífica nossa, alargada por outros desafios
que temos atualmente. Como você, sonhamos e também lutamos, inspirados e
motivados por Jesus e sua missão, na busca e construção de um mundo sem discriminação,
sem segregação, sem injustiça, mas de equidade. Onde não haja qualquer tipo de
classificação hierárquica, mas convivência fraterna e celebração da beleza e
riqueza da diversidade. A fim de que não haja mais discriminação de judeu,
grego ou palestino, de homem, mulher ou outro gênero, de homossexual,
transexual ou hetero, de negro, amarelo ou branco, de senhor, servo ou
semiescravo, mas que todos e todas sejam respeitados e tenham acesso aos mesmos
direitos, sobretudo de plena humanidade, como fez Jesus. Afinal, é este o
padrão exemplar do Reino, cujo Deus não faz acepção de pessoas, antes ama a
justiça e executa o direito (cf. Dt 10.17; Sl 99.4).
Clemir Fernandes
Clemir FernandesClemir Fernandes é formado
em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul, em Ciências Sociais (UFF),
mestre em Sociologia (UERJ) e doutorando em Ciências Sociais (UERJ). É
pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (ISER), integra o Grupo Gestor
da Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS) e é coordenador do núcleo do
Rio de Janeiro da Fraternidade Teológica Latino Americana-Brasil. É
editor-adjunto da revista Novos Diálogos
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