“Sou negro, realizo uma fusão total com o mundo, uma compreensão
simpática com a terra, uma perda do meu eu no centro do cosmos: o branco, por
mais inteligente que seja, não poderá compreender Armstrong e os cânticos do
Congo. Se sou negro não é por causa de uma maldição, mas porque, tendo
estendido minha pele, pude captar todos os eflúvios cósmicos. Eu sou
verdadeiramente uma gota de sol sob a terra...”
Frantz
Fanon, em “Pele negra, Máscara branca” (1)
A Bíblia sempre foi, e
continua sendo, um livro em disputa. Nada surpreendente, em se tratando de um
livro que dita em definitivo as regras, estabelece a “normalidade”, ou a
“normatividade”, de toda uma civilização. Um livro, uma narrativa, com esse
poder, não pode pertencer a um povo marginal, ele deverá ser universal, e para
ser universal ele deve ser lido a partir da construção hegemônica. Talvez por
isso todas as suas histórias são lidas quase que unilateralmente ou para
exemplificar, esclarecer, o relacionamento com Deus, ou para tratar do
relacionamento com o outro, com a igreja e com o mundo (como um cristão deve
agir). A hermenêutica hegemônica não permite a leitura biopolítica da bíblia.
Nela não se enxerga o controle social, o governo dos corpos, o exercício do
poder sobre o cotidiano, o uso da força produtiva do cidadão comum, os pobres
da cidade. Da mesma forma, nela também não se permite a racialização da
leitura. A “lupa racial” foi quebrada, antes mesmo que pudesse ser usada. ·.
A
estranheza diante de uma proposta de Teologia Negra ou Feminista, só evidencia
nossa dificuldade em lidar com a diversidade que a bíblia contém, mas é
invisibilizada. Estranho mesmo é imaginar que a bíblia tenha sobrevivido por
tantos séculos como um livro realmente diferente de qualquer outro, no que diz
respeito a sua relação com a historicidade. Dela ocultou-se o conflito, os
embates, a crítica social, a denúncia da exploração, a sexualidade, a
sensualidade, o racismo, o estigma. Mais fabuloso que um mar que se abre e um
homem que é engolido por um grande peixe, é a narrativa de personagens
a-históricos, sem contexto, como que incontextualizáveis, sem dramas pessoais,
desprovidos de dramas humanos, envolvidos em grandes feitos atravessados pelos
fenômenos maravilhosos, mas não envolvidos nos feitos do dia a dia (a traição,
a sedução, a disputa de poder, o nepotismo, a tradição, a artimanha, a
capacidade de mentir e enganar, a expectativa, a frustração, a solidariedade, a
honra, a ética).
Os conflitos raciais foram, na
melhor das hipóteses, negligenciados da hermenêutica hegemônica. Nenhum esforço
para evidenciar que o conflito narrado no capítulo 12 do livro de Números é
marcado pelo racismo. Miriã e Arão se indignam com a escolha de Moisés por uma
mulher preta. É preta no hebraico, e traduzida apenas como “etíope”, cuxita (Nm
12.1-9). E é muito provável que é pelo receio da hostilidade por ser preta que
a amada no livro dos Cânticos pede para que seu amado não atente para isso, ou
seja, para o fato dela ser preta (Ct 1.5, 6). O profeta Jeremias é salvo por
intervenção de um subalterno, eunuco, preto (Jr 38.7, 8), serviçal no reino,
que ousa apelar ao rei para ajudar o profeta. Mas é invisível a condição de
eunuco dos etíopes, uma dupla condição de subalterno e também de supressão de
sua sexualidade, a não exposição das mulheres do reino branco à sexualidade
preta. O etíope, escravo, eunuco, preto no reino branco, podia gozar da “boa
vivência” no palácio (como nossas domésticas que “são como se fossem da
família”). Mas a pergunta permanece: pode o etíope mudar a cor de sua pele (Jr.
13.23)? O eunuco etíope é “o mordomo da Casa Branca”. A revelia de sua máscara
branca, sua pele é preta. A estes, precarizados na sua condição subalterna,
“assexuados” num mundo sexuado, Deus nega a invisibilidade, com eles se
preocupa, e lembra em promessas (Is 56.4, 5). Nada disso foi problematizado na
hermenêutica hegemônica. E nossos seminários mantém a cartilha.
E segue o nosso povo
tateando a bíblia como um livro em que todas as histórias orientam na direção
de como crentes devem ser no mundo, na igreja e com Deus, sem nenhum
atravessamento histórico, sem diálogo com nossos dramas estruturais. Talvez
isso tenha influenciado o questionamento que James Cone diz ter feito a si
mesmo:
“Qual a conexão entre vida e
teologia? A resposta não pode ser a mesma para brancos e negros, porque brancos
e negros não participam da mesma vida. A vida de um escravo negro e a vida de
um senhor de escravos eram radicalmente diferentes”.
É verdade. Tudo isso faz da
bíblia um livro muito mais de histórias “negras”. Ela contém a trajetória de um
povo sofrido, hostilizado, que é liberto da condição de escravo. Um povo que
perde tudo, que é vilipendiado e transita entre o cativeiro e a adaptação num
mundo que vai trocando de império dominante.
O Deus encarnado subverte a
expectativa do poder e entra no mundo pela “porta dos fundos”. Ninguém acredita
num Deus que vem pobre, de cidade periférica, de um pai carpinteiro, num
contexto de vulnerabilidade e em que o contexto social é dominado pelo embate
político religioso. Há fundamentalistas, legalistas, radicais subversivos,
políticos profissionais, territórios ocupados política e militarmente; seus
seguidores são pobres, sem crédito, sem influências, subempregados,
desempregados e alguns mais estáveis; precisa “subverter” a Lei para tensionar
a sua ressignificação (o que era o seu verdadeiro sentido), tornando-a
acessível aos que por ela só eram sobrecarregados, controlados, escravizados e
punidos; que morre e sofre, não uma morte simples, mas de pária, mais vil, injustamente
surrado, torturado, requintes de crueldade; contudo ele vence, e todos estes
venceram nele. Por isso, a história bíblica é negra, é mulher, é indígena, é
africana, é latina. Mas, não obstante, a hermenêutica ainda é europeia. É
branca. Ao menos um mês no ano, leiamos esta história diferente.
e http://www.cebi.org.br/noticias.php?secaoId=¬iciaId=5229